domingo, 20 de fevereiro de 2011

Lembranças de viagens 1

Os últimos dias que passei naquela cidade foram de contentamento.

Era um domingo lindo, tínhamos terminado nossa seção de meditação. Fiquei sem voz, todo silêncio do mundo tomou conta de minha alma quando aquela jovem, meio índia, meio negra, levantou-se e disse:

- Preparei algo especial para você, esse é o primeiro poema que recitei, é de Esmeralda Ribeiro, ele me lembra você, nos lembra, nós mulheres livres, escute:

Ressurgir das cinzas

Sou forte, sou guerreira,
tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“nunca me verás caída ao chão".

Sou destemida,
herança de ancestrais,
não haja linha invisível entre nós
meus passos e espaços estão contidos
num infinito tonel,
mesmo tendo na lembrança jovens e parentes que, diante da batalha deixaram
a talha da vida se quebrar,
mesmo tendo saudade cultivada no portão.
Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“nunca me verás caída ao chão”.

Sou guerreira como Luiza Mahin,
Sou inteligente como Lélia Gonzáles,
Sou entusiasta como Carolina de Jesus,
Sou contemporânea como Firmina dos Reis
Sou herança de tantas outras ancestrais.
E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,
mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar,
mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça
mesmo assim tenho este mantra eu meu coração:

“Nunca me verás caída ao chão".

Sou da labuta, sou de luta,
herança dos ancestrais,
trabalhar, trabalhar, trabalhar,
mesmo que nos novos tempos irmãos seduzidos
pelo sucesso vil me traiam, nos traiam como Judas
sob a mesa, meu, ganha-pão.
Mesmo que esses irmãos finjam que não nos vêem,
estarei ali ou onde estiver, estarei de corpo ereto,
inteira, pronunciando versos e eles versando sobre o poder,
mesmo assim tenho esse mantra em meu coração
“nunca me verás caída ao chão".

Me abraço todos os dias,
me beijo, me faço carinho, digo que me amo, enfim,
sou vaidosa espiritual,
mesmo com mágoas sedimentadas no peito,
mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do meu jeito,
mesmo assim tenho esse mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão".

Me fortaleço com os ancestrais,
me fortaleço nos braços dos Erês.
podem pensar que me verão caída ao chão,
saibam que me levantarei não há poeiras para quem cultua seus ancestrais,
mesmo estando num beco sem saída, levada por um mar de águas,
mesmo que minha vida vire uma maré,
vire tempestade, sei que vai passar.
Porque são meus ancestrais que se reúnem num ritual secreto
para me levantar. Eu darei a volta por cima e estarei em pé, coluna ereta,
cheia de esperança, cheia de poesia e com muito axé
por isso, desista, tenho este mantra em meu coração:
“nunca me verás caída ao chão
".

Sua voz era forte, seu olhar no infinito. Dos tesouros que guardo na vida,
com certeza a lembrança desse dia é um dos mais preciosos.